Saturday, July 25, 2009

Estórias da Eira

Subo para cima duma rocha, a do costume. Olho para o sul, que ainda ressaca do pesado inverno que está a acabar. Continua sem fundos. Sinto um arrepio que corre a praia toda, são agora seis e um quarto da manhã e o vento sopra levemente vindo do oeste, arrastando consigo o perfume das algas e lodo desde o pontão. Percorro com o olhar a praia do norte. O nevoeiro é cerrado, forço os olhos. Apenas a brisa que empurra a areia das dunas marca presença na praia. Vejo que o mar se vestiu de gala só para mim e a espuma envolve-o de branco; esboço um sorriso para mim mesmo e pulo do meu trono, já sinto a areia entre os pés.
A prancha debaixo dum braço, a vontade debaixo do outro. Em frente à casa amarela, desço a praia e caminho em direcção ao mar. Lá longe, o Sra da Graça já saiu e começam-se a recolher as redes. Levanto a mão aos pescadores que acenam em respeito e entro para Água. Faz tempo que não me sentia assim.
Umas boas ondas, outras menos boas. Alguns sustos. Sempre sozinho, memorável.
Exausto e com a consciência tranquila de uma manhã bem aproveitada, descanso agora, e sentado de costas voltadas para o mundo vejo que os primeiros turistas começam já a migrar até à praia. Está na hora. Uma mão cheia de ondas a agarrar-me o peito; deixo-a aqui junto ao mar até que a maré encha e a leve. Que a guarde para mim, para a próxima vez. Ou para outros. Pudesse toda a gente ter esta sensação uma única vez na vida. O nevoeiro já começa fugir e o sol espreita com força, por hoje o dia está feito.
A casa ainda fica longe, dirijo-me à eira do antigo casebre à beira da praia. Sentado, está lá um velho. As rugas de expressões cansadas vincam-se nos seus olhos estreitamente abertos, culpa dum sol que bate agora com força. Sol esse que lhe fez as mesmas marcas na cara queimada. Não levanta a cabeça. As mãos gretadas continuam a remendar uma rede. O seu olhar, por muito que pareça focado no trabalho, está a milhas da costa. Três gaivotas pousam na eira, à procura dos restos de peixe na rede, distanciaram-se do grupo que ficou na praia. Pouso a prancha e agarro a toalha para me vestir. “Uma bela semana que aí vem” – disse o velho pescador sem largar o canivete e tirar as mãos das malhas. Os olhos sempre virados para baixo, como se tivesse adivinhado a minha presença. Aquela não era uma das tantas frases de quem mete conversa. Era o desabafo do respirar de muitos anos de mar, duma vida cansada que ainda entrava todas as madrugadas no barco. Saiu com tamanha profundidade que não respondi, não era uma pergunta. Continuo a vestir-me. “Ainda ontem estiveram uns quinze lá na água, aí com as pranchas…estava a maré a vazar pelas quatro da tarde quando começaram a ir embora. Hora pela qual também começavam a aparecer em Maceda os miúdos que se ficaram aqui enquanto tomavam banho. Coisa estranha, o mar. Sobe todos os dias, para levar recordações com ele. E todos os dias desce, trazendo-as de volta.”, acabou de falar e levantou-se do seu mocho para ir buscar a outra ponta da rede. Voltou-se a sentar. “Já dizia o meu pai, “mar que tudo me levas, o pão nos dás”, e verdade seja dita, apesar de se ter perdido numa das correntes de Janeiro, criou sete filhos com o barco. Ele há com cada uma…”. Continuo calado. A reflexão do velho não precisa, em nada, de uma entrada da minha ignorância. As mãos tremem-lhe, será provavelmente das articulações. Ou do copo de bagaço que ainda não tomou hoje. As marcas nas mãos mostram as fendas abertas pelas cordas e pelo canivete, já fechadas com o tempo. E ali, fazendo até lembrar uma velha a fazer croché, continuou o velho pescador a divagar sobre a vida. Filosofava sobre como tudo lhe tinha sido difícil de amealhar, de como comera o pão que o diabo amassou. De como saiu das suas aventuras em mares desconhecidos na pesca do bacalhau, no tempo da crise. Como a guerra lhe tinha ficado com o filho que agora estaria encarregue do barco. Acredito que eu não tinha sido escolhido a dedo para ouvir tais segredos, não me vejo merecedor de tal. Acredito sim que apenas lhe tenha servido como um pretexto para não ter que se render à imagem do velho sábio que fala sozinho e é visto como um louco. Nisto, eu já me tinha sentado. Falou mesmo em politica e de como a sua profissão não tinha futuro. E eu, limitava-me a escutar. As moscas pousavam-lhe em cima, mas parecia não se importar. Já eu, apenas abri a boca para perguntar se precisava de ajuda quando começou a levar a rede para o barraco, já remendada, a qual ele recusou. Guardava lá agora as bóias e o resto das ferramentas, entrava e saía enquanto falava. Os olhos ofuscados do sol, mas não precisava deles, a profissão já o conhecia. Partes eu ouvia, outras partes não. Mas não o mandava repetir. Ele falava para ele, não para mim. Fecha a porta da velha cabana quando eu me levanto. “Bem, ainda tenho que ir à lota ver o peixe. Isto se não tomarmos conta daquilo, vendem tudo ao desbarato. Uma bela conversa, até logo.” – eu ri-me. Em duas horas eu não construíra uma frase sequer. Não me despedi do velho, um “Obrigado” saíra-me espontaneamente. E era bem sincero.
Muitos anos já se passaram. Vejo ainda hoje, que as cataratas me tomaram a visão, o velho, a rede e o verão. Na minha eira sinto a nortada que seguiu toda a semana. Sinto a espuma que brota do mar a encrespar-me a pele manchada, e na sombra respondo com um suspiro de quem não mais conhecerá uma onda, sentirá uma corrente. Não quero que tenha chegado a minha vez de falar sozinho. Não sou louco, muito menos sou sábio.
Um vulto aproxima-se e empunha algo numa mão e algo debaixo do braço, a postura é-me familiar e remete-me para o passado. Hoje o velho já morreu. Hoje quem conta a história sozinho sou eu.